As músicas que selecionei para desenvolver meu PA foram baixadas do site cifrantiga, http://cifrantiga3.blogspot.com/. Como são muitas as músicas (230), considerei as que estavam disponíveis no site (76) como uma espécie de corpus, a partir do qual selecionei 10 aleatoriamente: Conversa de botequim, A razão dá-se a quem tem, João Ninguém, A.b. surdo, Não tem tradução, O maior castigo, Com que Roupa?, Cidade mulher, Três apitos e Último desejo.
Ao ler as letras, procurei ver rapidamente se aquelas características de que me havia lembrado, homem durão, machão estavam mais presentes. Logo percebi que não era bem isso, mesmo na música Três apitos, em que os versos Por que não atende ao grito tão aflito / Da buzina do meu carro? e Você é mesmo artigo que não se imita poderiam sugerir aquele estereótipo. Pois esses versos marcam uma diferença social entre o homem, em seu carro, e a mulher, operária cortejada por ele. Em decorrência disso, poderíamos pensar que o termo artigo, referido à figura feminina, indica um olhar que vê a mulher como objeto, configurando o perfil machista desse olhar. Mas se observarmos a figura masculina representada, o "eu" que fala também é mostrado como objeto, a partir da personificação do carro.
Por isso e levando em consideração o todo significativo da música, creio ser válido dizer que, em ambos os versos, está em destaque menos a posição machista do que a exasperação do eu provocada pela indiferença do ser amado. Nesse sentido, é a frustração desse eu que está sendo tematizada, em decorrência da indiferença com a qual se sente tratado.
Assim, fazendo uma releitura desses mesmos versos na música, verificamos que o termo artigo, mais enaltece a figura feminina do que o contrário, pois o verso acaba ressaltando, nesse contexto, a independência econômica da mulher, o que lhe permite ser indiferente aos atributos econômicos e sociais do conquistador. Nesta, como em outras músicas em que o sentimento amoroso entre homem e mulher aparece, poderíamos dizer que o poeta da vila mais critica do que (re)afirma o perfil masculino de sua época. Isto é, com fina ironia e despojamento de linguagem, a música de Noel Rosa, neste aspecto que me interessa aqui, parece descrever um comportamento masculino em contradição com o seu tempo, buscando ora se afirmar em valores até então consagrados, tentando preservar a imagem pública, ora assumindo com parcimônia o fim da relação amorosa, causada pelo que fez, ou talvez pelo que não fez, como sugere Meu último desejo.
Curiosidade à parte, em relação a esta música, a intérprete Araci de Almeida, incidentalmente ao gravá-la, trocou o artigo "o", definido, por "um", indefinido, no verso Diga sempre que eu não presto, que meu lar é o botequim, operando uma alteração de sentido bastante significativa, se pensarmos, por exemplo, no estado afetivo do eu que lamenta a separação. Estaria aí inconscientemente uma (re)leitura feminina desse eu que se despe(de) em seu último desejo?
Nossa, Mário, que análise rica e interessante fizeste! Nunca tinha imagina esta questão e a riqueza de analisar essas letras por este aspecto do gênero. Parabéns, sua pesquisa está brilhante! Vi que colocaste a pergunta em evidência, está ótimo! Minha última sugestão é apenas colocar algumas imagens. Abração, Rosália
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